Nós dois estávamos deitados na cama e ela
tinha acabado de contar uma história. Coberta até o pescoço, se
ajeitava no travesseiro enquanto eu encostava as pontas dos meus dedos
descalços na sola do pé gelado dela, meio fazendo carinho, meio fazendo
cócegas, meio fazendo nada. Ela pegou alguma coisa no criado mudo e
virou pra mim, sorrindo. Eu sorri de volta e ela, encostando uma perna
na minha, me perguntou “o quê?”.
Minha primeira reação foi dizer um “você é
linda, sabia?”. Primeiro porque era verdade, ela era sim linda. Os
olhos dela me desarmavam, o sorriso dela me deixava a 5 cm do chão, o
jeito como o cabelo dela caia na testa mexia com sentimentos que eu nem
sabia que tinha e possivelmente relacionamentos duradouros já tinham
começado baseados em menos afeto e atração do que eu sentia pelo lóbulo
esquerdo da orelha dela, num dia em que ela achava que estava
“desarrumada e sem graça”, chegando do trabalho ou coisa assim.
Mas achei que um “linda” não seria certo,
por conta das implicações. Afinal, se uma garota ouve de um namorado um
“linda” ela acaba lendo naquilo uma mensagem implícita de que a
aparência dela está sendo filtrada pelos sentimentos dele, ou seja, é um
“você é linda porque eu gosto de você”. O que definitivamente não era
verdade. Não que eu não gostasse dela, eu gostava muito, mas eu queria
deixar claro que ela era linda como 0 kelvin é frio, os Beatles são
bacanas e Mogo é o melhor Lanterna Verde: não era uma opinião, era uma
constatação factual, fatal, quase científica. Naquele momento eu queria
explicar, mas não soube, que ela seria linda pra um telescópio da NASA,
para um visitante alienígena, pra um canoísta maori ou para um
observador situado num ponto O, localizado na margem de um rio e que
precisa determinar sua distância até um ponto P, localizado na outra
margem, sem atravessar o rio. Lógico feito trigonometria.
Pensei em dizer que ela me fazia feliz.
Que depois dela eu tinha tido contato com alguns níveis de empolgação,
diversão e satisfação que eu só havia lido nos livros, visto nos filmes e
observado constrangido nos desenhos dos Ursinhos Carinhos, com a
vantagem de que ela tinha um gosto musical muito melhor e nunca precisou
disparar raios coloridos em locais públicos, porque isso seria meio
chato e constrangedor. Que em momentos assim, quando ela encostava no
meu ombro, mordia meu pescoço ou apenas ficava deitada no meu peito, eu
me sentia mais tranqüilo do que em casa, mais relaxado do que quando eu
bebia, mais feliz do que quando eu fazia gol de bicicleta em noite
chuvosa na última queda da pelada de quarta-feira. E deus sabe que gol
de bicicleta – bicicleta mesmo, não tô falando de puxeta – é um troço
muito foda e se eu fiz uns dois nessa vida foi muito.
E eu pensei em dizer isso. E pensei em
dizer que queria que aquilo não acabasse, que a gente devia passar mais
tempo assim, que queria tirar logo a carteira de motorista pra poder
encontrar com ela no trabalho qualquer dia desses, que provavelmente
nunca tinha gostado de ninguém daquele jeito e que eu realmente queria
que ela se vestisse de batmoça em algum final de semana desses, ainda
que esse tópico fosse totalmente não-relacionado aos assuntos anteriores
e só tivesse a ver com o fato de que ela realmente ficaria muito
gostosa de preto e com aquela máscara. Mary Marvel podia ser bacana
também, se fosse o uniforme vermelho clássico e rolasse a sainha.
Mas quando ela piscou pra mim e, já
rindo, me perguntou “ei, o quê?”, tudo que eu consegui fazer foi
responder “o que o quê?”. Aí ela devolveu um “o que o que o quê?”,
fizemos uma piada boba sobre aquilo ter virado um passa ou repassa e a
possibilidade do Celso Portiolli sair gritando “valendooo” de dentro do
banheiro. Daí voltamos a conversar e bem…acho que as vezes existem
coisas que a gente apenas não sabe como dizer, por mais que queira.
E não, não tô falando apenas do lance da Mary Marvel.