Eu já vi filmes e reportagens e
páginas de revistas com histórias de superação, mas quando isso não faz parte
do seu dia-a-dia é difícil de entender tamanha resignação ou aceitação das
próprias limitações, é difícil de entender porque eu me conheço bem e eu sei o
quanto eu apedrejaria céus e terra e culparia a todos se passasse por algo
parecido. Eu sei o quanto isso seria devastador pra mim. E é bonito ver os
outros enxergando além disso, mas a gente nunca é sábio a ponto de aprender a
lição dos outros.
Pois bem, tomei coragem de travar
uma conversa com ela. Alice, ela se apresentou. No início foi uma conversa
comum e, com suavidade, eu toquei no assunto e ela me contou como foi a
experiência: um acidente de carro. Nada de colegagem bêbada no volante. Nada de
viagens na madrugada. Ela estava com a família, o pai no volante, e um acidente
aparentemente bobo levou embora a capacidade dela de andar. Terminando o curso
de Economia, namorando e com mil planos de intercâmbio no exterior e
pós-graduação e mestrado e casamento, ela passou a depender de muito auxílio
dos pais e amigos e namorado, e viu todos esses planos serem adiados
indefinidamente para algum ponto no futuro onde ela pudesse caminhar com as
próprias pernas - figurativamente falando (Perdão pelo trocadilho).
É claro que isso não me bastou:
eu quis saber mais. Perguntei como diabos ela fazia pra ser a pessoa mais bem
humorada e aparentemente satisfeita em volta daquela mesa; como ela fazia pra
ser feliz daquela forma tão suave e natural e invejável; perguntei se as coisas
eram como pareciam ou se aquilo era só uma forma de se desviar do sofrimento
real pelo qual ela estava passando; perguntei se ela era feliz – sim, eu abusei
de uma liberdade que ela não me deu. Mas ela simplesmente sorriu. Ah,
felicidade é um conceito muito flexível, ela respondeu. Felicidade pra cada um
significa uma coisa. Uma casa boa, um currículo invejável, uma carreira estável
ou uma vida de aventuras. Cada um impõe condições pra própria felicidade. Eu
parei de impor condições pra minha. Me ative ao essencial. Esse acidente me
trouxe muito mais coisas boas do que ruins.
É lógico que eu discordei
mentalmente e não me senti satisfeita e perguntei ‘Como assim coisas boas?’
Eu ouvi
silenciosamente o relato que se segue:
‘Na época do acidente
eu estava em um processo de negação de muitas coisas das quais eu sempre tive
muita certeza. Eu não acreditava mais em quase nada, duvidava de tudo: que eu
seria uma boa profissional, que o meu namorado me amava, ou que meus pais eram
capazes de me ouvir. A essas alturas eu já duvidava de Deus e de metade das
minhas amizades, que já eram poucas. E essas pequenas perguntas já estava
esgotando todo o meu fôlego. Eu já não sabia por que fazia umas coisas ou por
que queria outras. Como resultado de tantas dúvidas vinha uma série de
inseguranças, e eu não tinha mesmo onde buscar resposta nenhuma. Incrivelmente,
tudo o que se seguiu depois do acidente foi respondendo minhas perguntas uma
por uma.
Eu me lembro de muito
pouco do acidente – acho que travei grande parte dessa memória – mas eu me
lembro muito bem de acordar e ver meu namorado debruçado na beira da maca. Eu
achei que ele estava dormindo, mas quando o chamei ele se levantou surpreso,
com os olhos vermelhos e cheios d’água, disse que me amava, e saiu correndo pra
chamar outras pessoas. Surgiram meus pais e duas amigas minhas, daquelas que eu
já não via há alguns meses por causa da correria do dia-a-dia. Então todos
começaram a comemorar euforicamente e eu não estava entendendo nada até o
momento em que alguém se deu ao trabalho de me explicar que eu estive em coma
por duas semanas e meia. Duas semanas e meia, e eles, todos eles, ficaram ali
de vigília. Faltaram aula e trabalho e até ali – o que eu considero tempo o
suficiente - não tinham se cansado de esperar por algum sinal de consciência da
minha parte. Com o meu despertar seguiu-se uma série de exames e, muito rápido,
veio o diagnóstico definitivo de que eu não poderia andar nunca mais – a não
ser, claro, por um milagre. O que veio depois disso foi duas semanas de
depressão intensa e choro – literalmente – incansável. Eu só não chorava quando
estava dormindo, e eu só dormia quando estava sedada. E eu tinha pesadelos e
tudo ficava pior. É incrível – ou nem tanto - que, ao constatar e aceitar a
irreversibilidade da situação, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a
pena: imagina só, todo mundo com pena de mim, fazendo as coisas pra mim por
obrigação, eu me tornando um peso, uma pedra no caminho das pessoas que se
sentiam, agora, obrigadas a me amar. E eu, sinceramente, não sei o que teria
sido de mim se minha mãe e meu pai não tivessem estado ali do meu lado, não só
me auxiliando no óbvio, mas me dando apoio sentimental e psicológico. Às vezes
eu acordava no meio da noite chorando e eu conseguia ver o desespero nos olhos
da minha mãe porque ela não podia fazer simplesmente nada. E eu queria morrer
só de ter que vê-la passar por isso. E ela ficou ali o tempo todo tão
intensamente, sofrendo cada sentimento que eu sentia, porque tudo o que me
passava pela cabeça eu falava, e ela não sucumbiu em momento algum. E meu pai,
que sempre foi silencioso, compartilhou comigo mais naqueles meses do que em
toda a nossa vida. E eu me desconsertava de uma forma irreparável quando eu via
– e, infelizmente, ainda vejo – culpa nos olhos dele, e na sua postura, e na
forma como ele se dirigia a mim, com os ombros pedindo desculpas por algo que
ele sequer poderia evitar. E eu só descobri bem depois quantos cheques
especiais e empréstimos ele fez só pra me dar o máximo de conforto dentro
daquela situação, mesmo sabendo que era irreversível. Tudo isso pra eu me
sentir o mínimo melhor. Ele fez, definitivamente, tudo o que ele podia.
Aos primeiros sinais
de melhora, eu chamei meu namorado no quarto de hospital e tive uma conversa um
tanto definitiva com ele: terminei o nosso namoro, inventei mil motivos – e fui
bastante convincente -, mas tudo o que eu queria era desobrigá-lo daquela situação.
E eu juro que o que eu mais queria era tê-lo ali, pois nunca havia sentido
tanta necessidade dele de todas as formas possíveis. E ele jurava que me amava,
que queria se casar comigo e que não tinha desistido dos nossos planos, e eu
enxerguei o desconserto dele diante daquela situação que era tão nova pra ele
quanto era pra mim. E, de certa forma, igualmente desafiadora e
desestabilizadora. E percebi o quanto ele estava agindo de forma impensada,
tentando provar algo pra si mesmo. Mandei-o de volta pra casa insistentemente e
ele foi, contrariado. Depois de voltar pra casa, depois de meses de
fisioterapia, de adaptação, e de todo aquele processo de ressocialização e
reestruturação de hábitos, ele bateu na minha porta, com toda a calma do mundo,
com uma serenidade e uma segurança imensa no peito. A gente conversou sobre
nada e, do nada, ele disse que me amava e me pediu em namoro. Eu conversei com
ele, expliquei minhas limitações, a dimensão do meu problema, falei tudo o que
era necessário e o que não era também. E ele respirou calmamente e respondeu:
eu já sei de tudo isso, quer namorar comigo? Então eu tive certeza, naquele
momento, de que ele me amava. Bem, que eu o amava, eu já tinha chegado há essa
conclusão fazia tempo. Respondi que sim, é claro, e hoje a gente namora já faz
dois anos depois do acidente e, com muita calma, o nosso cantinho, o casamento,
tudo está sendo preparado. E ele sempre lidou com tudo de uma forma que só fez
me ensinar.
Os meus amigos, bem,
é intenso demais pra descrever porque eu teria que exemplificar em tantos
tópicos, só pra você ter uma noção, que você provavelmente pensaria que eu
estou me gabando. Mas uma coisa eu posso te dizer, e isso resume com
simplicidade o que eu estou sentindo: eu fiz poucos amigos ao longo da vida,
mas, sinceramente, eu não consigo enxergar de que forma eu poderia ter
escolhido melhor.
Ah, não pouco
importante, eu ressalto que, ao voltar para a faculdade, dois semestres depois,
qual não foi minha surpresa ao descobrir que tinha um empregador literalmente
esperando por mim, porque ele viu o meu currículo e conversou com os
professores sobre meu desempenho e decidiu que eu seria a escolhida para uma
possível contratação, e esperou três meses e meio até eu voltar às minhas
atividades curriculares pra me convidar pra estagiar em sua empresa, com
contratação posterior.
Eu posso colocar
‘andar’ como primeiro tópico da minha lista de ‘coisas que eu preciso para ser
feliz’, mas isso não é o mesmo que assinar atestado de infelicidade? Eu não vou
optar pela miserabilidade da amargura se me restam outras opções. Ninguém fica
numa cadeira de rodas porque escolheu assim, mas a vida às vezes – quase sempre
- força as escolhas por nós, não é? Ela tá lá, sempre empurrando a gente pra
diversas situações indesejáveis. Eu consegui fazer isso com ‘andar’, e vi que
era capaz de fazer isso com muito mais coisas muito mais tolas e incalculavelmente
menos necessárias. Você tem tudo o que você quer? A sua resposta provavelmente
é não e por isso eu te digo: vai ficar esperando por essas coisas pra ser feliz
com quem você ama? Ou pra curtir o show da banda que você gosta? Ou pra dormir
uma boa noite de sono? Ou pra viajar num final de semana e tirar tempo pra ler
um bom livro? Ou pra fazer todas aquelas coisas que te dão algum prazer, mesmo
que pareçam insignificantes? Bem, eu não estou esperando por nada pra fazer
tudo isso que eu amo fazer.
E por último, nem por
isso desimportante, eu te digo que, depois disso tudo, depois de passar por
tudo o que eu passei e de chegar onde estou, é natural e assertivamente que eu
te digo, com convicção e fé – que são intransferíveis – que Deus existe, sim.
Pronto, todas as
perguntas que me incomodavam foram respondidas. Agora, se eu tivesse continuado
a minha vida da forma como eu estava, bem... Ninguém nunca vai saber, não é?’
Será que todo mundo não deveria
passar por uma situação assim pra reaprender a olhar a vida, ou às coisas à sua
volta? Eu não sei os outros, mas eu, muito
provavelmente, sim. Porque eu vou continuar pensando que lidar com tudo isso de
uma forma tão singela ultrapassa o conceito de ‘dom’.
"Quem já passou por esta vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu; porque a vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou pra quem chorou, pra quem sofreu; (...)
Não há mal pior do que a descrença, mesmo um amor que não compensa é melhor que a solidão;
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair, pra quê somar se a gente pode dividir? (...)"
Como Dizia o Poeta - Vinícius de Moraes e Toquinho
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