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segunda-feira, março 19, 2012

Coisas de que eu preciso para ser feliz

Uma vez uma amiga me convidou pra um pequeno jantar em sua casa pra alguns amigos e alguns amigos de amigos. Pouca gente, uma conversa agradável, despretensiosa, aquele social de sempre. Tirando por uma coisa que estava me incomodando mais do que eu poderia admitir: entre os amigos e colegas de minha amiga, estava uma linda moça, vestida com muito bom gosto, uma maquiagem impecável e sentada em uma cadeira de rodas. Não pude deixar de reparar, de prestar atenção e de encarar e, por mais que eu tentasse disfarçar, eu não conseguia. Por fim fui ficando sem graça e com medo de a estar constrangendo. Mas o que houve é que nem de longe eu estava impressionada por ela ter uma limitação física –resultado de um acidente no auge da juventude. O mais incrível é que ela sequer parecia se dar conta. Ela sorria como se ninguém lhe tivesse contado que ela iria ficar presa ali pra sempre.
Eu já vi filmes e reportagens e páginas de revistas com histórias de superação, mas quando isso não faz parte do seu dia-a-dia é difícil de entender tamanha resignação ou aceitação das próprias limitações, é difícil de entender porque eu me conheço bem e eu sei o quanto eu apedrejaria céus e terra e culparia a todos se passasse por algo parecido. Eu sei o quanto isso seria devastador pra mim. E é bonito ver os outros enxergando além disso, mas a gente nunca é sábio a ponto de aprender a lição dos outros.
Pois bem, tomei coragem de travar uma conversa com ela. Alice, ela se apresentou. No início foi uma conversa comum e, com suavidade, eu toquei no assunto e ela me contou como foi a experiência: um acidente de carro. Nada de colegagem bêbada no volante. Nada de viagens na madrugada. Ela estava com a família, o pai no volante, e um acidente aparentemente bobo levou embora a capacidade dela de andar. Terminando o curso de Economia, namorando e com mil planos de intercâmbio no exterior e pós-graduação e mestrado e casamento, ela passou a depender de muito auxílio dos pais e amigos e namorado, e viu todos esses planos serem adiados indefinidamente para algum ponto no futuro onde ela pudesse caminhar com as próprias pernas - figurativamente falando (Perdão pelo trocadilho).
É claro que isso não me bastou: eu quis saber mais. Perguntei como diabos ela fazia pra ser a pessoa mais bem humorada e aparentemente satisfeita em volta daquela mesa; como ela fazia pra ser feliz daquela forma tão suave e natural e invejável; perguntei se as coisas eram como pareciam ou se aquilo era só uma forma de se desviar do sofrimento real pelo qual ela estava passando; perguntei se ela era feliz – sim, eu abusei de uma liberdade que ela não me deu. Mas ela simplesmente sorriu. Ah, felicidade é um conceito muito flexível, ela respondeu. Felicidade pra cada um significa uma coisa. Uma casa boa, um currículo invejável, uma carreira estável ou uma vida de aventuras. Cada um impõe condições pra própria felicidade. Eu parei de impor condições pra minha. Me ative ao essencial. Esse acidente me trouxe muito mais coisas boas do que ruins.
É lógico que eu discordei mentalmente e não me senti satisfeita e perguntei ‘Como assim coisas boas?’
Eu ouvi silenciosamente o relato que se segue:
‘Na época do acidente eu estava em um processo de negação de muitas coisas das quais eu sempre tive muita certeza. Eu não acreditava mais em quase nada, duvidava de tudo: que eu seria uma boa profissional, que o meu namorado me amava, ou que meus pais eram capazes de me ouvir. A essas alturas eu já duvidava de Deus e de metade das minhas amizades, que já eram poucas. E essas pequenas perguntas já estava esgotando todo o meu fôlego. Eu já não sabia por que fazia umas coisas ou por que queria outras. Como resultado de tantas dúvidas vinha uma série de inseguranças, e eu não tinha mesmo onde buscar resposta nenhuma. Incrivelmente, tudo o que se seguiu depois do acidente foi respondendo minhas perguntas uma por uma.
Eu me lembro de muito pouco do acidente – acho que travei grande parte dessa memória – mas eu me lembro muito bem de acordar e ver meu namorado debruçado na beira da maca. Eu achei que ele estava dormindo, mas quando o chamei ele se levantou surpreso, com os olhos vermelhos e cheios d’água, disse que me amava, e saiu correndo pra chamar outras pessoas. Surgiram meus pais e duas amigas minhas, daquelas que eu já não via há alguns meses por causa da correria do dia-a-dia. Então todos começaram a comemorar euforicamente e eu não estava entendendo nada até o momento em que alguém se deu ao trabalho de me explicar que eu estive em coma por duas semanas e meia. Duas semanas e meia, e eles, todos eles, ficaram ali de vigília. Faltaram aula e trabalho e até ali – o que eu considero tempo o suficiente - não tinham se cansado de esperar por algum sinal de consciência da minha parte. Com o meu despertar seguiu-se uma série de exames e, muito rápido, veio o diagnóstico definitivo de que eu não poderia andar nunca mais – a não ser, claro, por um milagre. O que veio depois disso foi duas semanas de depressão intensa e choro – literalmente – incansável. Eu só não chorava quando estava dormindo, e eu só dormia quando estava sedada. E eu tinha pesadelos e tudo ficava pior. É incrível – ou nem tanto - que, ao constatar e aceitar a irreversibilidade da situação, a primeira coisa que me veio à cabeça foi a pena: imagina só, todo mundo com pena de mim, fazendo as coisas pra mim por obrigação, eu me tornando um peso, uma pedra no caminho das pessoas que se sentiam, agora, obrigadas a me amar. E eu, sinceramente, não sei o que teria sido de mim se minha mãe e meu pai não tivessem estado ali do meu lado, não só me auxiliando no óbvio, mas me dando apoio sentimental e psicológico. Às vezes eu acordava no meio da noite chorando e eu conseguia ver o desespero nos olhos da minha mãe porque ela não podia fazer simplesmente nada. E eu queria morrer só de ter que vê-la passar por isso. E ela ficou ali o tempo todo tão intensamente, sofrendo cada sentimento que eu sentia, porque tudo o que me passava pela cabeça eu falava, e ela não sucumbiu em momento algum. E meu pai, que sempre foi silencioso, compartilhou comigo mais naqueles meses do que em toda a nossa vida. E eu me desconsertava de uma forma irreparável quando eu via – e, infelizmente, ainda vejo – culpa nos olhos dele, e na sua postura, e na forma como ele se dirigia a mim, com os ombros pedindo desculpas por algo que ele sequer poderia evitar. E eu só descobri bem depois quantos cheques especiais e empréstimos ele fez só pra me dar o máximo de conforto dentro daquela situação, mesmo sabendo que era irreversível. Tudo isso pra eu me sentir o mínimo melhor. Ele fez, definitivamente, tudo o que ele podia.
Aos primeiros sinais de melhora, eu chamei meu namorado no quarto de hospital e tive uma conversa um tanto definitiva com ele: terminei o nosso namoro, inventei mil motivos – e fui bastante convincente -, mas tudo o que eu queria era desobrigá-lo daquela situação. E eu juro que o que eu mais queria era tê-lo ali, pois nunca havia sentido tanta necessidade dele de todas as formas possíveis. E ele jurava que me amava, que queria se casar comigo e que não tinha desistido dos nossos planos, e eu enxerguei o desconserto dele diante daquela situação que era tão nova pra ele quanto era pra mim. E, de certa forma, igualmente desafiadora e desestabilizadora. E percebi o quanto ele estava agindo de forma impensada, tentando provar algo pra si mesmo. Mandei-o de volta pra casa insistentemente e ele foi, contrariado. Depois de voltar pra casa, depois de meses de fisioterapia, de adaptação, e de todo aquele processo de ressocialização e reestruturação de hábitos, ele bateu na minha porta, com toda a calma do mundo, com uma serenidade e uma segurança imensa no peito. A gente conversou sobre nada e, do nada, ele disse que me amava e me pediu em namoro. Eu conversei com ele, expliquei minhas limitações, a dimensão do meu problema, falei tudo o que era necessário e o que não era também. E ele respirou calmamente e respondeu: eu já sei de tudo isso, quer namorar comigo? Então eu tive certeza, naquele momento, de que ele me amava. Bem, que eu o amava, eu já tinha chegado há essa conclusão fazia tempo. Respondi que sim, é claro, e hoje a gente namora já faz dois anos depois do acidente e, com muita calma, o nosso cantinho, o casamento, tudo está sendo preparado. E ele sempre lidou com tudo de uma forma que só fez me ensinar.
Os meus amigos, bem, é intenso demais pra descrever porque eu teria que exemplificar em tantos tópicos, só pra você ter uma noção, que você provavelmente pensaria que eu estou me gabando. Mas uma coisa eu posso te dizer, e isso resume com simplicidade o que eu estou sentindo: eu fiz poucos amigos ao longo da vida, mas, sinceramente, eu não consigo enxergar de que forma eu poderia ter escolhido melhor.
Ah, não pouco importante, eu ressalto que, ao voltar para a faculdade, dois semestres depois, qual não foi minha surpresa ao descobrir que tinha um empregador literalmente esperando por mim, porque ele viu o meu currículo e conversou com os professores sobre meu desempenho e decidiu que eu seria a escolhida para uma possível contratação, e esperou três meses e meio até eu voltar às minhas atividades curriculares pra me convidar pra estagiar em sua empresa, com contratação posterior.
Eu posso colocar ‘andar’ como primeiro tópico da minha lista de ‘coisas que eu preciso para ser feliz’, mas isso não é o mesmo que assinar atestado de infelicidade? Eu não vou optar pela miserabilidade da amargura se me restam outras opções. Ninguém fica numa cadeira de rodas porque escolheu assim, mas a vida às vezes – quase sempre - força as escolhas por nós, não é? Ela tá lá, sempre empurrando a gente pra diversas situações indesejáveis. Eu consegui fazer isso com ‘andar’, e vi que era capaz de fazer isso com muito mais coisas muito mais tolas e incalculavelmente menos necessárias. Você tem tudo o que você quer? A sua resposta provavelmente é não e por isso eu te digo: vai ficar esperando por essas coisas pra ser feliz com quem você ama? Ou pra curtir o show da banda que você gosta? Ou pra dormir uma boa noite de sono? Ou pra viajar num final de semana e tirar tempo pra ler um bom livro? Ou pra fazer todas aquelas coisas que te dão algum prazer, mesmo que pareçam insignificantes? Bem, eu não estou esperando por nada pra fazer tudo isso que eu amo fazer.
E por último, nem por isso desimportante, eu te digo que, depois disso tudo, depois de passar por tudo o que eu passei e de chegar onde estou, é natural e assertivamente que eu te digo, com convicção e fé – que são intransferíveis – que Deus existe, sim.
Pronto, todas as perguntas que me incomodavam foram respondidas. Agora, se eu tivesse continuado a minha vida da forma como eu estava, bem... Ninguém nunca vai saber, não é?’
Será que todo mundo não deveria passar por uma situação assim pra reaprender a olhar a vida, ou às coisas à sua volta? Eu não sei os outros, mas eu, muito provavelmente, sim. Porque eu vou continuar pensando que lidar com tudo isso de uma forma tão singela ultrapassa o conceito de ‘dom’.

"Quem já passou por esta vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu; porque a vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou pra quem chorou, pra quem sofreu; (...)
Não há mal pior do que a descrença, mesmo um amor que não compensa é melhor que a solidão;
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair, pra quê somar se a gente pode dividir? (...)"
Como Dizia o Poeta - Vinícius de Moraes e Toquinho

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