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domingo, janeiro 27, 2013

Leve

A leveza dentro das relações muitas vezes está erroneamente associada com a complacência diante das atitudes alheias sem qualquer posicionamento/questionamento. A falta de honestidade - não em um sentido pejorativo, mas sim num contexto da mentira social, do que é socialmente aceito e agradável - é um grande problema. A omissão excessiva como consequência da tentativa de nos preservar ou de não sermos mal-interpretados coloca-nos em situações em que não somos sinceros uns com os outros, tampouco com nós mesmos, em relação ao que sentimos/pensamos. E tudo o que nos permitimos dizer ou sentir é aquilo que é tragável ao ponto de vista da racionalidade.
A consequência disso? Aquelas pessoas que se preocupam em analisar-se o tempo todo, em cada atitude - mesmo que sem sucesso -, que buscam ser coerentes, passam por um padecimento mental que é ter que equilibrar-se entre cultivar a franqueza consigo e com o outro, enquanto se preserva dentro da esfera do socialmente aceitável - para não agredir o outro com uma honestidade com a qual a maioria das pessoas não sabe lidar.
Quando não há um real conhecimento mútuo, fazer-se claro é um desafio. E, até que esse conhecimento seja alcançado, a cada vez que decide-se dizer o que se pensa, faz-se necessária toda uma contextualização e explicação detalhada, com o máximo de clareza possível, porque qualquer interpretação mal-feita pode custar caro.
Além disso, o padrão comportamental alheio te faz ter que provar, a cada atitude ou palavra dita, que suas motivações não são as comuns e que são, de fato, embasadas, pra que você não seja interpretado de forma errônea. Quanto desgaste mental.
Volto ao cerne: na tentativa pretendida como sensata de se colocar em prática a não-cobrança, baseada na crença de que tudo o que te oferecem dentro das relações - sejam elas familiares, amorosas ou amistosas, principalmente - devem partir da vontade genuína do outro, nos calamos diante de diversas situações, nos colocamos em posição de fragilidade, ao estender o nosso leque de atitudes que consideramos aceitáveis. Neste momento, qualquer protesto que possa ser levantado soa como uma cobrança descabida, já que cada um oferece o que quer.
Na tentativa de ser leve com os outros, tem-se em troca uma maior densidade consigo mesmo, uma preocupação exacerbada em ser coerente - nada que não seja racionalmente embasado não deve ser dito -, uma infinidade de protestos engolidos em seco e, mais uma vez, em um lamentável efeito rebote, relações que não ultrapassam a superficialidade.

Gosto

O gosto do teu beijo começa doce, mas termina sempre, enfim, em um gosto amargo.
Então o que é que tanto me faz retornar?
Como é que enxergando tudo o que está gritantemente errado, do início ao fim, da cabeça aos pés, eu volto ao mesmo lugar, e pago pra ver?
Nota mental: quando se faz o que quer, há sempre um preço a se pagar.

quarta-feira, janeiro 16, 2013

Pilates

"Gosto de acreditar que não foi fácil. Que você quase mandou o táxi voltar, que você quase me ligou, que você quase escreveu. Que a noite você sente minha falta, que sem mim a cama parece maior, que você precisou limpar seu mp3 porque músicas demais te faziam pensar em nós dois. Que as vezes um amigo seu menciona o meu nome e você bebe sua cerveja mais rápido, que tem alguma coisa minha que você levou embora da casa e eu ainda não percebi e que em algumas noites, quando você se sente muito sozinha, você tira de dentro de um lugar escondido no seu armário enquanto imagina se a gente não merecia mais tempo junto.

Gosto de imaginar que você ainda vai ser feliz, mas nem tanto. Que ao menos você ainda lembra, que ao menos você ainda pensa, que ao menos um pouquinho disso ficou, mesmo depois de você ter ido embora."

Trecho do texto Pilates, de João Baldi Jr.

segunda-feira, janeiro 07, 2013


O tempo tem o dom de banalizar acontecimentos notáveis e de desvalorizar sentimentos grandiosos.

As Últimas Flores...

Sentou-se no sofá meio zonzo, meio fraco, meio perdido. "Em estado terminal", o filho dela disse no telefone. Vinte e um anos depois da última vez que a tinha visto, não sabia o que esperar ao encontrá-la.
"Ela está em estado terminal. O médico sugeriu que ela se despedisse dos amigos e da família. Amanhã mesmo a levaremos pra casa... (Silêncio) Desculpe o incômodo... é que você continuou sendo a referência dela de família, de marido. Desculpe se estou sendo inadequado ou algo..."
"Não, de forma alguma. Fez muito bem em ligar!"
"Bem, se quiser, pode visitá-la amanhã de manhã..."
"Não. Irei hoje mesmo... pode me passar o nome do hospital, número do quarto, por favor?" [...]
Se arrependeu de ter prometido ir ainda hoje. Não sabia o que fazer, como se comportar. Não é como se pedir desculpas a essa altura fosse ser de alguma serventia. Sentia vergonha.
Imaginava o quanto ela deveria ter sofrido depois que ele a deixou. Com o filho recém-nascido, desempregada, morando num casebre alugado. Como, depois de tudo, ele poderia continuar sendo a sua referência de família?
Não se arrependia. Não. Faria tudo de novo. Era uma questão de sobrevivência, e aquilo, pra ele, não era vida. Nunca foi. Era pior do que morrer. Era como estar morrendo a todo o tempo, incessantemente, mas sem o alívio, sem o vazio, sem a anestesia. Foi-se embora porque não poderia lidar com outros dois seres humanos retirando dele o resto de suas energias, tempo, saúde e dinheiro. Dois seres frágeis dependendo dele. Era um peso muito grande, e partir, sem sombra de dúvidas, seria o melhor pra todos. Enfim, não se arrependia.
Mas sentia vergonha. Não saberia como olhar nos olhos dela. Nem nos olhos do filho dela. Não deles: dela, apenas. Ele não tinha participação nenhuma no fato de o bebê ter se tornado um homem. E um homem forte, aparentemente.
Não saberia o que dizer. Ele não lamentava por ter partido. Mas sentia muito pelas consequências daquilo pros dois.
Até então era fácil lidar com isso. Quase nem pensava no seu passado, já tão longínquo. Mas agora ele estava sendo obrigado a vê-la prostrada, moribunda, ainda mais frágil do que quando a deixou. Não conseguiria não se ver como único responsável por tal estado, se ele saiu e a deixou de um jeito e, agora, ao voltar, a encontraria ainda mais decadente. Ele não a acompanhou ao longo de sua trajetória, não seguiu as evoluções, e temia que as imagens pontuais dos dois extremos da vida, colocadas lado a lado, pudessem atormentar sua consciência, colocando-o como o culpado. E ele não era. Não poderia ser...
Tomou fôlego e, junto, alguma coragem. Levantou-se, enfim, pegou as chaves e caminhou até o carro.
Trancou-se dentro do seu Audi A8 e, ao tentar dar a ignição, viu-se, de novo, paralisado. Precisava saber o que dizer quando a visse...
Teve uma ideia... passou pela floricultura e comprou orquídeas. Era um gesto muito bonito, com certeza. Levar flores era reconfortante. Isso o pouparia de dizer muita coisa: as flores falavam por si, só.
As flores seriam o conforto para a alma da mulher. Representavam o que restou de belo do passado, representavam todo o encanto do que poderia ter sido, representavam a esperança de algum milagre repentino.
E pra ele, pra sua vergonha, pros seus ombros, pra sua consciência, representavam o alívio.
Seus ombros de repente ficaram leves, seus pensamentos ficaram em paz, e ele, com o peito cheio de honra e de orgulho de si, foi fazer esse último e bondoso gesto à mulher que tanto o amou um dia.

sexta-feira, janeiro 04, 2013

Gravata

Acordou às 5h30. Detestava aquela hora da manhã. Detestava aquele meio termo entre a noite e o dia, a luz fraca que apenas se insinuava vindo de fora, e o fato de o seu corpo, mesmo depois de tanto tempo, não ter se acostumado a acordar naquele horário. Mas ele precisava trabalhar...
Levantou-se, vestiu-se e caminhou até a padaria. Comprou pães de sal, que não queria, porque a mulher gostava, suco de goiaba, que não tomava, porque a filha queria, coca-cola, que detestava, porque o filho exigia. Mas não comprou aquela rosca caseira que desejava porque estava cara e ele precisava economizar..
Pegou o ônibus para o trabalho. Ele detestava a mistura de cheiros, odiava ouvir as histórias e conversas alheias, abominava permanecer em pé enquanto o ônibus se deslocava. Mas a mulher precisava do carro pra ir pra academia, e depois pra buscar as crianças, e então pra visitar a mãe...
Chegou ao trabalho quinze minutos mais cedo. Ele poderia chegar no horário, mas o chefe gostava de encontrá-lo em sua mesa sóbrio, sério, produtivo, com as tarefas do dia já encaminhadas. E ele precisava manter o emprego...
Detestava as pessoas com quem trabalhava, suas conversas superficiais, suas vidas medíocres, e odiava ainda mais a ilusão que tinham de que eram importantes. Mas ainda assim era educado e papeava durante o café e participava das confraternizações de fim de ano e fingia interesse pois precisava ser educado pra manter um clima agradável...
Depois do almoço, sentou-se em sua cadeira e folgou o nó da gravata. Odiava ter que usar a gravata e a calça social. O que mais queria era por uma bermuda e caminhar no sol enquanto ouvia música no seu fone de ouvido. Mas ele precisava passar uma boa impressão no trabalho...
Mal podia esperar pra entrar de férias. O que mais queria era ir passar o mês na praia. Mas o dinheiro das férias ele iria gastar na festa que a filha exigia e a mulher queria porque a filha da vizinha fez e ela precisava fazer melhor. Ele odiava gente e festas e odiava ainda mais a vizinha e a sua filha. Mas...
O nó na gravata agora já não parecia mais apertado o suficiente. Tudo o que ele queria naquele momento era se sufocar com aquela maldita gravata.
Ele estava, há muito tempo, cercado de pessoas que ele detestava, fazendo coisas que abominava, engolindo uma realidade que execrava, vivendo uma vida que odiava. E tudo isso pra quê?
Duvidava achar uma resposta...
A vida é este infindável questionamento, mas a morte anestesia... e ela parecia agora ser a melhor das opções.