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segunda-feira, dezembro 24, 2012

Descuido

Um toque que desmanchou antigos planos e despertou novas expectativas. Um beijo que dizimou minha cautela e transcendeu barreiras psicológicas. Um abraço que liquidou minha sensatez e tirou o meu controle. Um convite que desmascarou minha maturidade e expôs minha puerilidade. Uma respiração que desmantelou minha resistência e exibiu minha vulnerabilidade.
Eu, de novo, pequena, exposta, inadvertida.
Ele, então, no controle, tomando a maior parte da minha consciência sem sequer se dar conta do estrago.
O abismo cada vez mais próximo, inevitável, atraente. Ele cada vez mais longe, alheio, inatingível.
Tudo tão físico, carnal, superficial. Recheado de ofegâncias, de peles se tocando, de lábios hábeis e corpos colados. 
Filmes, músicas, pessoas, a noite: tudo posto em terceiro plano. E nós dois roubando a cena no meu palco pessoal.
Ao mesmo tempo tudo tão sentido e revivido e idealizado numa mente adolescente - e que beira a infantil.
Todo um diálogo interno sobre cuidados e sobre não cair pela pessoa errada. Todo o autocontrole, adquirido em anos, jogado pela janela do carro. Toda a maturidade emocional pisoteada por seus pés descuidados. Todo um discurso sobre não se envolver esmagado entre nossos corpos.
Eu andei pisando torto. Eu andei fazendo escolhas ruins. Eu estive perdida. E gostei.
Mas agora eu quero o controle de novo. E pra isso você vai ter que partir.

sábado, dezembro 08, 2012

– Vamos lá, me ver não vai arrancar nenhum pedaço – diz.
Como se ainda houvesse algum pedaço para arrancar.
– O que de tão urgente temos a dizer que não possa ser adiado? 

Gabito Nunes

segunda-feira, dezembro 03, 2012

Quatro mil pés

Estou a um passo do abismo, e já deveria ser suficientemente assustador o fato de que eu posso cair a qualquer momento. Qualquer. Se eu respirar errado, se eu tropeçar, se eu me desequilibrar, se eu cair no sono, se eu me distrair, se alguém me empurrar, se passar um vento forte; a qualquer momento eu posso cair.
Mas o mais aterrorizador de tudo isso é que este abismo me é estranhamente convidativo. Esse mar de desconhecido me magnetiza de uma forma que eu mal consigo compreender. Quando me dou conta, já estou com um pé para dentro desse despenhadeiro, jogando com o pouco fôlego de vida que me restou depois de tudo.
Acordo e durmo cercada por este precipício: ele agora ocupa toda a minha visão, e eu já perdi de vista o caminho de volta. As minhas chances estão fora do meu alcance.
Mas será que é o bastante essa consciência?
Será que é o suficiente eu estar vestida com uma armadura, com uma arma empunhada, estar vigil e esperando o ataque? Será que basta reconhecer a queda para que ela não se torne dolorosa? Será que basta perceber o abismo para não cair?
Estou a quatro mil pés da superfície, mas eu quero cair.

domingo, dezembro 02, 2012

Garrafa

Eu tenho do meu lado essa garrafa vazia e eu já nem me lembro de quê. O álcool que eu bebi irrita o meu estômago, me dá náuseas, e mesmo assim eu estou feliz. Eu espero que ele me faça mal o bastante para que eu consiga vomitar tudo. Vomitar você, suas lembranças, sua voz, sua saliva, seu suor, sua risada sarcástica, seu silêncio. Quero vomitar você inteiro, te extrair de cada célula do meu corpo. Faz tanto tempo que estou tentando metabolizar esse veneno que você espalhou no meu sangue, que meu fígado já não aguenta mais. Esse cheiro que você deixou impregnado em todo o meu corpo me cansa e me enoja. Esse gosto que você deixou na minha boca me dá náusea. Essa saudade que você deixou no meu corpo me subjuga. Essa mensagem que você deixou na minha caixa de entrada me faz querer voltar no tempo e fazer tudo ao contrário.
O tempo passa, mas resiste em ficar pra trás. Seu corpo está longe do meu, mas ainda posso sentir os calafrios que o seu toque provocou em mim. Há muito tempo não ouço a sua voz, mas eu ainda tremo só de lembrar.
E tudo isso me dá nojo.
Esse passado insistente, esses regressos intermináveis, essa vida que anda em círculos e que parece querer nos confundir: tudo isso me faz querer pular um mês ou um ano ou uma década de minha vida, só pra alcançar aquele ponto em que o seu nome não vai mais causar absolutamente nenhum efeito em mim.