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domingo, agosto 12, 2012

Mini-conto #5*

*Do blog Just Wrapped
Nós dois estávamos deitados na cama e ela tinha acabado de contar uma história. Coberta até o pescoço, se ajeitava no travesseiro enquanto eu encostava as pontas dos meus dedos descalços na sola do pé gelado dela, meio fazendo carinho, meio fazendo cócegas, meio fazendo nada. Ela pegou alguma coisa no criado mudo e virou pra mim, sorrindo. Eu sorri de volta e ela, encostando uma perna na minha, me perguntou “o quê?”.
Minha primeira reação foi dizer um “você é linda, sabia?”. Primeiro porque era verdade, ela era sim linda. Os olhos dela me desarmavam, o sorriso dela me deixava a 5 cm do chão, o jeito como o cabelo dela caia na testa mexia com sentimentos que eu nem sabia que tinha e possivelmente relacionamentos duradouros já tinham começado baseados em menos afeto e atração do que eu sentia pelo lóbulo esquerdo da orelha dela, num dia em que ela achava que estava “desarrumada e sem graça”, chegando do trabalho ou coisa assim.
Mas achei que um “linda” não seria certo, por conta das implicações. Afinal, se uma garota ouve de um namorado um “linda” ela acaba lendo naquilo uma mensagem implícita de que a aparência dela está sendo filtrada pelos sentimentos dele, ou seja, é um “você é linda porque eu gosto de você”. O que definitivamente não era verdade. Não que eu não gostasse dela, eu gostava muito, mas eu queria deixar claro que ela era linda como 0 kelvin é frio, os Beatles são bacanas e Mogo é o melhor Lanterna Verde: não era uma opinião, era uma constatação factual, fatal, quase científica. Naquele momento eu queria explicar, mas não soube, que ela seria linda pra um telescópio da NASA, para um visitante alienígena, pra um canoísta maori ou para um observador situado num ponto O, localizado na margem de um rio e que precisa determinar sua distância até um ponto P, localizado na outra margem, sem atravessar o rio. Lógico feito trigonometria.
Pensei em dizer que ela me fazia feliz. Que depois dela eu tinha tido contato com alguns níveis de empolgação, diversão e satisfação que eu só havia lido nos livros, visto nos filmes e observado constrangido nos desenhos dos Ursinhos Carinhos, com a vantagem de que ela tinha um gosto musical muito melhor e nunca precisou disparar raios coloridos em locais públicos, porque isso seria meio chato e constrangedor. Que em momentos assim, quando ela encostava no meu ombro, mordia meu pescoço ou apenas ficava deitada no meu peito, eu me sentia mais tranqüilo do que em casa, mais relaxado do que quando eu bebia, mais feliz do que quando eu fazia gol de bicicleta em noite chuvosa na última queda da pelada de quarta-feira. E deus sabe que gol de bicicleta – bicicleta mesmo, não tô falando de puxeta – é um troço muito foda e se eu fiz uns dois nessa vida foi muito.
E eu pensei em dizer isso. E pensei em dizer que queria que aquilo não acabasse, que a gente devia passar mais tempo assim, que queria tirar logo a carteira de motorista pra poder encontrar com ela no trabalho qualquer dia desses, que provavelmente nunca tinha gostado de ninguém daquele jeito e que eu realmente queria que ela se vestisse de batmoça em algum final de semana desses, ainda que esse tópico fosse totalmente não-relacionado aos assuntos anteriores e só tivesse a ver com o fato de que ela realmente ficaria muito gostosa de preto e com aquela máscara. Mary Marvel podia ser bacana também, se fosse o uniforme vermelho clássico e rolasse a sainha.
Mas quando ela piscou pra mim e, já rindo, me perguntou “ei, o quê?”, tudo que eu consegui fazer foi responder “o que o quê?”. Aí ela devolveu um “o que o que o quê?”, fizemos uma piada boba sobre aquilo ter virado um passa ou repassa e a possibilidade do Celso Portiolli sair gritando “valendooo” de dentro do banheiro. Daí voltamos a conversar e bem…acho que as vezes existem coisas que a gente apenas não sabe como dizer, por mais que queira.
E não, não tô falando apenas do lance da Mary Marvel.

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